segunda-feira, 6 de julho de 2009

Furo esportivo!


No relato de Nelson Nunes, percebe-se que mais difícil do que se obter um furo, é obter um furo esportivo. E que além de muita sorte, é preciso ser persistente e saber exatamente o que se quer.

"Para um repórter recém-formado, um grande furo deixa de ser aquele objeto de desejo que embola o sonho de todo jornalista e acaba virando uma obsessão. Quando você trabalha num jornal pequeno, que não tem a mesma estrutura oferecida pelos veículos dominantes do mercado, o desafio chega a ser uma paranóia. Você tem pesadelos com aquilo todos os dias, se esforça, trabalha sobrado, explora suas fontes, reza para todos os santos, apela para os orixás e, muitas vezes, o milagre só acontece num golpe de sorte. Parece que repórter esportivo é meio como centroavante: precisa estar no lugar certo na hora certa. O meu primeiro furo de reportagem aconteceu assim, num lance em que se misturaram sorte, oportunismo e a dignidade de um mito do futebol brasileiro. A seleção brasileira passava por grande convulsão em 1985, ano em que a disputa das eliminatórias para a Copa do México – 86 se transformara numa epopéia. Sob o comando do técnico Evaristo de Macedo, o time brasileiro ia aos trancos e barrancos, colecionando resultados inesperadamente ruins e despertando no torcedor um sentimento de ira. E medo de ver o país do futebol fora da Copa. A imprensa acompanhava o desenrolar dos fatos fazendo força para não pender para o lado do povão, que pedia a cabeça de Evaristo. Até que o técnico declarou que não ligava para as críticas de ninguém, pois estava mais preocupado em contar os milhões de dólares que havia ganho no futebol árabe. Aquilo soou como deboche e acendeu de vez o estopim da crise na seleção, determinando dois fronts para os personagens da guerra: de um lado, Evaristo; de outro, toda a pátria de chuteiras.
No meio desse chumbo trocado, um fiel escudeiro de Evaristo passava incólume, pela discrição no trato e pela exuberância histórica de seu passado. Hideraldo Luiz Bellini, o capitão Bellini da Copa de 68 na Suécia, assistia a tudo praticamente calado. Dias depois, com a demissão de Evaristo e toda a comissão técnica, retomou a vida pacata de professor de uma escolinha de futebol em São Paulo. Sua paixão pelo trabalho com os garotos compensava o trauma vivido na seleção, que só chegaria à Copa graças à providencial substituição de Evaristo por Telê Santana, o mestre que havia conquistado o respeito do mundo da bola na Copa anterior, na Espanha – 82.
Foi a paixão de Bellini pelo trabalho com os garotos que o levou a sair da toca. Louco para conseguir uma entrevista com alguém que tivesse vivido de perto o inferno da seleção na época de Evaristo, telefonei para o velho Bellini com uma missão ingrata. Convencê-lo a falar. O capitão da Suécia aceitou, com uma condição: só daria a entrevista para falar do seu trabalho na escolinha, na formação dos garotos, nas lições que podia passar para as novas gerações. A seleção de Evaristo seria um tema proibido. Aceitei as condições, fechei o trato, mas desliguei o telefone com a esperança de poder virar o jogo ali, no calor da entrevista, como aprendi com os artilheiros que estão sempre no lugar certo na hora certa.
O encontro foi frio, Bellini, vivido, estava com um pé atrás. No íntimo sabia que eu estava ali com outra finalidade. Sentado à sombra de um quiosque de sapé, respondia sobre seu trabalho com aqueles garotos com o olhar perdido no horizonte. A angústia que demonstrava a cada resposta sobre o futuro do futebol brasileiro foi a senha de que eu precisava para tomar coragem e perguntar sobre a tal seleção de Evaristo. Perguntei a primeira e Bellini respondeu, quase sem pensar. Fui em frente e Bellini abriu o jogo, como quem quisesse desabafar. Para deixar evidente que não falávamos em off, liguei o gravador e deixei que ele abrisse o coração. Sem roteiro, sem direção de cena, sem cortes, Bellini contou todos os detalhes (quase todos eles podres) dos bastidores que marcaram uma das maiores crises da seleção brasileira. Nada ficou esquecido no lodo do passado. Nenhuma ferida ficou sem ser tocada. Com a dignidade de um craque maior do que aquele festival de mazelas, Bellini contou como eram frágeis os laços de identidade entre Evaristo e os jogadores, como eram maquiavélicos os interesses de gente que ainda hoje gravita em torno da seleção, como era visível o ódio que Evaristo nutria em relação à parte da imprensa que o havia tomado como cristo, como era repugnante a atuação dos arautos do caos – alguns jogadores incluídos entre eles -, que torciam para o fracasso da seleção, confiando no Maximo do quando pior pior, melhor ..
A fita acabou e Evaristo continuou falando, enriquecendo, a cada nova lembrança, detalhes de todas aquelas revelações. Eu não via a hora de voltar à redação e transcrever a fita para a lauda – a matéria estava pronta, era só fazer o título. Nem isso, pois que o título também já estava pronto: O desabafo do capitão.
A matéria saiu assim no jornal A Gazeta Esportiva, no dia seguinte, em forma de depoimento. Meses depois, foi distinguida com o Prêmio Esso de Jornalismo Esportivo, honra profissional que devo exclusivamente a dignidade de um homem como Hideraldo Luiz Bellini, o capitão que não quis calar."

[Nelson Nunes – editor-executivo do Diário de São Paulo]


-Referências:
BARREIRO, H.; RANGEL, P. Manual do Jornalismo Esportivo. São Paulo: Contexto, 2006.

[Fabiana Pelinson]

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